sexta-feira, 31 de julho de 2009

Nunca e Sempre
Helena Kolody

Sempre cheguei tarde
Ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.

Nunca floresceram
Em minha primavera
As rosas que sonhei colher.

Mas, sempre os passarinhos
Cantaram
E fizeram ninhos
Pelos beirais
Do meu viver.




Presença
Helena Kolody

Coragem de andar
Sobre os precipícios
Sem desfalecer,
Entre labaredas,
Mas não se queimar,
Com os violentos
E os indiferentes,
No mundo inimigo
Sem deixar de amar.
Eu Comigo
Helena Kolody

Muito briguei eu comigo,
Tive raiva,
Me insultei.
E, de incontido desgosto,
Em meu próprio ombro chorei.


Cântico XVII
Cecília Meireles

Perguntarão pela tua alma.
A alma que é ternura,
Bondade.
Tristeza.
Amor.
Mas tu mostrarás a curva do teu vôo
Livre, por entre os mundos...
E eles compreenderão que a alma pesa.
Que é um segundo corpo,
E mais amargo,
Porque não se pode mostrar,
Porque ninguém pode ver...

Cântico VI
Cecília Meireles


Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Realidade
Florbela Espanca

Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei...se te perdi...

Roseira Brava
Florbela Espanca

Há nos teus olhos um tal fulgor
E no teu riso tanta claridade,
Que o lembrar-me de ti é ter saudade
Duma roseira brava toda em flor.

Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade
São como a alma a arder do próprio Amor!

Nasci envolta em trajes de mendiga;
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de rainha!

Tua irmã...teu amor...e tua amiga...
E também, toda em flor, a tua filha,
Minha roseira brava que é só minha!...

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Pássaros Libertos
Helena Kolody


Palavras são pássaros.
Voaram!
Não nos pertencem mais.

Longe
Helena Kolody

Às vezes,
Tudo é tão longe de mim...
Meu viver parece uma história
Que alguém sonhou
Há muito tempo,
Num país distante.
Assovio
Cecília Meireles


Ninguém abriu a sua porta
para ver o que aconteceu:
Saímos de braços dado
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu


Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que DEUS me deu.

Acontecimento
Cecília Meireles

Aqui estou, junto à tempestade
chorando como uma criança
que viu que não eram verdade
o seu sonho e a sua esperança.

A chuva bate-me no rosto
e em meus cabelos sopra o vento.
Vão-se desfazendo em desgosto
as formas do meu pensamento.

Chorarei toda a noite, enquanto
perpassa o tumulto nos ares,
para não me veres em pranto,
nem saberes, nem perguntares:

“Que foi feito do teu sorriso,
que era tão claro e tão perfeito?"
E o meu pobre olhar indeciso
não te repetir: "Que foi feito...?"

Acalanto
Cecília Meireles

Dorme, que eu penso.
Cada qual assim navega
Pelo seu mar imenso.

Estarás vendo. Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.

Dorme, que eu penso.
Que eu penso nesse navio
Clarividente em que vais.

Mensagens tristes lhe envio.
Pensamentos... – nada mais.

quarta-feira, 29 de julho de 2009


Se
JG de Araújo Jorge

Se eu pudesse parar a minha vida
e dar eternidade a um só momento,
se eu não tivesse o meu destino preso
ao destino das coisas nos espaços...

Se eu pudesse destruir todas as lei
se dentro do Universo que se move
para meu mundo:

havia de escolher esse segundo
em que Você estivesse nos meus braços!
Todas as rosas são a mesma rosa,
amor!, a única rosa;
e tudo está contido nela,
breve imagem do mundo,
amor!, a única rosa.


Juan Ramon Jiménez
Pedido
Gonçalves Dias

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.

De mim bem longe
Teu pensamento!
Teu pensamento,
Bem longe errava.

Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.

Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.

Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu'rias
Exp'rimentar-me.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.
Poema da Despedida

Não, tu sabes que não fizestes bem.
Que sem você não sou ninguém.
Deixastes no meu olhar a tristeza do teu
quando me dissestes adeus. .

No meu caminho deixastes tuas pegadas
e uma saudade desesperada,
que vive em minh'alma escondida,
chorando tua partida.

E eu que te amo tanto ainda,
vivo desta saudade infinda.
Na memória guardo doces lembranças.
No coração escondo lágrimas de dor
e no poema da despedida
exalto nosso amor

(Desconheço o autor)

terça-feira, 28 de julho de 2009


Você Nunca Está Só
Olegário Mariano

Você nunca está só. Sempre ao seu lado
Há um pouquinho de mim pairando no ar.
Você bem sabe: o pensamento é alado...
Voa como uma abelha sem parar.

Veja: caiu a tarde transparente.
A luz do dia se esvaiu... Morreu.
Uma sombra alongou-se a seus pés mansamente...
Esta sombra sou eu.

O vento, ao pôr do sol, num balanço de rede,
Agita o ramo e o ramo um traço descreveu.
Este gesto do ramo na parede
Não é do ramo: é meu.

Se uma fonte a correr chora de mágoa
No silêncio da mata, esquecida de nós,
Preste bem atenção nesta cantiga da água:
A voz da fonte é a minha voz.

Se no momento em que a saudade se insinua
Você nos olhos uma gota pressentiu,
Esta lágrima, juro, não é sua...
Foi dos meus olhos que caiu...

Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

David Mourão-Ferreira
De Volta
Juan Ramón Jiménez

Devagar voltamos,
Com tudo já dito.
Tu me olhas ainda,
Eu já não te fito.

Tu tocas nas flores,
Eu vou beira-rio.
Que modo diverso
O de nós sorrirmos!


A grande lua branca
Em nosso caminho!
A ti ela aquece,
A mim me dá frio.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Canção da Excêntrica
Cecília Meireles


Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
Se volto sobre meu passo,
é distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.



Em colcha florida
Me deitei.
Pássaros pintados
Escutei.
Grinaldas nos ares
Contemplei.

Da morte e da vida
Me lembrei.
Dias acabados
Lamentei.

(Flores singulares
Não bordei.
A canção trazida
Não cantei.

Naveguei tormentas pelos quatro lados.
Não as amansei!
Ó grinaldas, flores, pássaros pintados,Como dormirei?)


Cecília Meireles

Espelhismo
Helena Kolody

Olhou numa poça d’água
E viu a mão estendida.

Alongou a própria destra,
Num impulso de acolhida

Mas, a mão tocou em nada.

Era, apenas, refletida
No espelho da água parada,
A sua mão estendida.
Chafariz
Helena Kolody

Música a fluir da pedra.
Coração cristalino do lugar.

Crianças aprisionam teu jorro
em cântaros humildes
e compunham, na água clara,
um mosaico de reflexos.

Nós
Helena Kolody

Fomos duas árvores costas.
Não misturamos as raízes.
Apenas enlaçamos os ramos
E sonhamos juntos.


O Verbo Amar
JG de Araújo Jorge

Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!
Quem Diria ?
JG de Araújo Jorge

Nós dois, os rostos juntos, como namorados...

Hoje, encontrei de novo aquela fotografia,
os rostos juntos, colados,
como namorados...

Encontrei-a. ....esbatida, já sem cor
- aquela fotografia...

- Quem diria? amor,- quem diria?

domingo, 26 de julho de 2009


Espera
Florbela Espanca

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou dona de místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera…espera…ó minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontrarás neste mundo!

De longe te hei de amar,
- da tranqüila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.

Cecília Meireles

A Minha Princesa Branca
Cecília Meireles

Estendo os olhos aos mares:
Ela anda pelas espumas...
– Serenidades lunares,
Tristezas suaves de brumas...

Ela anda nos céus vazios,
Em brancas noites morosas:
Mira-se na água dos rios,
Dorme na seda das rosas...

Passa em tudo, grave e mansa...
E, do seu gesto profundo,
Solta-se a grande esperança
De coisas fora do mundo...

Por sobre as almas vagueia:
Almas santas... Almas boas...
É um palor de lua cheia,
Na água morta das lagoas...

Quando contemplo as encostas,
De alma ansiosa por vencê-las,
Vejo-a no alto, de mãos postas,
Muda e coroada de estrelas...

E vou, sofrendo degredos,
A dominar os espaços...
Só quero beijar-lhe os dedos
E adormecer-lhe nos braços!

sábado, 25 de julho de 2009


A Última Cantiga
Cecília Meireles

Num dia que não se adivinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-se: “Era a expressão
que ela ultimamente tinha.”

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça
- toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito: “Não”.

E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.
A Doce Canção
Cecília Meireles

Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve, no chão, criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.

Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto,
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
- todos perdidos de encanto,
só eu morrendo de triste!

Por assim tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não o ausente,
para trazer o Universo
de pólo a pólo contente!
A Flor e o Ar
Cecília Meireles

A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito;
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame,
não tenho mão para flor;
Pergunto, ao pensar no amor,
como é possível que se ame.

Arame e seda, percorro
o fio do tempo liso.
e nem sei do que preciso,
de tão depressa que morro.

Neste destino a que vim,
tudo é longe, tudo é alheio.
Pulsa o coração no meio
só para marcar o fim.

sexta-feira, 24 de julho de 2009


Culpado
JG de Araújo Jorge

Não consigo chegar. Estou sempre partindo.

Absolutamente incapaz para a felicidade,
vou inutilizando cada amor, tão de pronto
o sinto meu...

Não protesto, nem reclamo: é um simples reconhecimento
da verdade,
- o culpado sou eu.
Guitarra
Cecília Meireles

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
– no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

A Minha Dor
Florbela Espanca

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento.
Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve… ninguém vê… ninguém…

Esquecimento
Florbela Espanca

Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei...tateio sombras...que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desse que era meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...

quinta-feira, 23 de julho de 2009


Pálida, a luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada...
— Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti — as noites eu velei chorando
Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!


Álvares de Azevedo

quarta-feira, 22 de julho de 2009


Inconstância
Florbela Espanca
 

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
 
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...
O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.


Carlos Drummond de Andrade
Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.

Carlos Drummond de Andrade
Luar
Cecília Meireles

Face do muro tão plana,
como sabugueiro florido.

O luar parece que abana
as ramagens na parede.

A noite toda é um zumbido
e um florir de vaga-lumes.

A boca morre de sede
junto à frescura dos galhos.

Andam nascendo os perfumes
Na seda dos cravos.

Brota o sono dos canteiros
como o cristal dos orvalhos.
O Palhaço
Judith Teixeira

Anda-se a rir, a rir dentro de mim,
Com as lívidas faces desbotadas
Um estranho palhaço de cetim,
Rasgando em dor meu peito às gargalhadas!

Sobe aos meus olhos sempre a rir assim -
Espreitando as figuras malsinadas
Que não se vestem nunca de arlequim,
Mas andam pela vida disfarçadas.


Na sombra dos meus cílios, emboscado,
Ri, no meu olhar frio e desolado,
Escondendo-se atônito e surpreso


E quando desce à triste moradia,
Vem mais louco e soberbo de ironia
Na irrisão dum sarcástico desprezo!





Sofrer Por Sofrer
JG de Araújo Jorge

Parti. Quis te deixar abandonada
às lembranças do amor que nos prendeu.
Trouxe comigo, na alma torturada,
um ciúme atroz ciumentamente meu...

Fugi... fuga cruel, desesperada,
quando supus que nosso amor morreu...
Fuga inútil, se ainda és a minha amada,
se continuo inteiramente seu!

Não, não me livro deste amor nefasto,
nem dessa angústia, dessa luta, desse
ciúme que aumenta quanto mais me afasto...

E hoje concluí, fugindo de meus passos,
que sofrer por sofrer, antes sofresse
como sempre sofri... mas nos teus braços!

O Homem e a Água
Mario Quintana

Deixa-me ser o que sou,
o que sempre fui,
um rio que vai fluindo.
E o meu destino é seguir... seguir para o mar.
O mar onde tudo recomeça...
Onde tudo se refaz...

segunda-feira, 20 de julho de 2009

História Antiga
JG de Araújo Jorge

Vendo-a, fico a pensar que entre nós, certo dia...
Mas, para que falar desse tempo feliz?
Eu a quis – nem eu sei dizer como a queria!
Ela – Quem poderá dizer quanto me quis?!

Foi romance talvez, foi talvez fantasia,
vida que quase chega, e foge, por um triz...
Nosso amor, mas nem eu me lembro o que dizia!
Quem há de se lembrar do que a sonhar se diz!

Era um misto de sonho e tímido desejo:
eu – temendo manchar uma afeição tão bela!
ela – a entregar-me a vida e a boca num só beijo!

Ah! a Vida... Afinal quem a vida adivinha?
Nem eu – que tanto a quis – sei por que não sou dela!
nem ela, há de saber por que nunca foi minha!



Fascinação
Miguel Torga

Canta-lhe o vento as áreas que conhece,
E nenhuma perturba aquele olhar.
Nenhuma o transfigura ou adormece
E o tira de sentir e de fitar.

Terra de consciência iluminada,
Limpa na sua luz pensada e fria,
A celeste canção enluarada
Nenhuma paz humana lhe daria.

Não, porque o vento só conduz aladas
Forças que oscilam a raiz;
E aquele olhar quer descobrir paradas
Seivas da vida que a razão lhe diz.

Farol
Miguel Torga

Luz maluca na noite, coração
Que palpita por tudo o que há de vir:
Ninguém te vê, ninguém te crê, senão
Quem teve o desespero de partir.

Quem se venceu na própria solidão,
E num frágil veleiro quis abrir
O mar salgado de uma condição
Onde a altura do céu vinha cair.

Quem, afogado em pranto, reconhece
No teu aceno inquieto e tutelar
Outra vida mais larga que amanhece,

Fresca de pressentir e germinar,
Lá numa praia branca onde apodrece
Quem nela só consegue naufragar.

sexta-feira, 17 de julho de 2009


Exaltação
Miguel Torga

Venha!
Venha uma pura alegria
Que não tenha
Nem a senha
Nem o dia!

Abra-se a porta da vida
Sem se perguntar quem é!
E cada qual que decida
Se quer a alma aquecida
No lime da nova fé.

Venha!
Venha um sol que ninguém tenha
No seu coração gelado!
Venha
Uma fogueira de lenha
De todo o tempo passado!

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano

como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.

Juan Ramón Jiménez
Eu mesma
Não passo de uma pessoa apenas
E apenas quero ser uma pessoa sensata
Mesmo com as trapaças das outras pessoas

Ora,
Eu mesma
Me passo pra trás.

Martha Medeiros