quarta-feira, 22 de setembro de 2010

















Lágrimas Ocultas
Florbela Espanca

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida…

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago…
Tomo a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim…

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

terça-feira, 21 de setembro de 2010


“Seja como for, continuo gostando muito de você - da mesma forma
você está quase sempre perto de mim,
quase sempre presente em memórias,
lembranças, estórias que conto às vezes, saudade..."

(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010


Charneca em Flor
Florbela Espanca

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

domingo, 19 de setembro de 2010

Infância II
Luna

era quando a gente tinha medo do escuro
e abria a janela pra entrar o luar
mas debaixo da cama ninguém se atrevia
pois ali um monstro dormia
então a gente ficava quietinha
e esperava o dia raiar
a escuridão se dissipar
pra dormir até meio dia!!!
Destino
Luna

Um dia, quando tudo aquilo que fizemos
e tudo que conquistamos
já estiver diluido na memória
e as nossas mãos vazias
dos frutos que colhemos
for apenas mais uma parte da história
a alma despojada dos ventos e moinhos
sozinha há de encontrar a eternidade
pousada nas estrelas dos caminhos...















Viver
Mario Quintana

Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros, pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
E voar...
Cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais fortes,
dos cafés mais amargos, dos pensamentos mais complexos
e dos sentimentos mais intensos.
Tenho um apetite feroz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer:
E daí?... Eu adoro voar!"

Clarice Lispector

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Da Calúnia
Mario Quintana

Sorri com tranqüilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade...

















Eis a Casa
Cecília Meireles

Eis a casa
menos que ar
imponderável,
no entanto é branca de camélia
e tem perfume de cal

Com seus corredores

O alpendre

As janelas uma a uma

Vê-se o mar. As montanhas. O trem passando
O gasômetro

Vêem-se as árvores por cima com suas flores

A casa imponderável

Mas de cimento madeira tijolos ferro vidro

A pintura prateada das grades cheira a óleo a fruta a luz

A água a pingar cheira a musgo,
soa metálica, trêmula
insetos pássaros líquidos
pequenas estrelas
clarins muito longe

Peitoris gastos de braços antigos
Sombras de borboletas

Eu sei quem comprou a terra
quem pensou nos desenhos
quem carregou as telhas

Passam legiões de formigas pelos patamares

Eu sei de quem era a casa
quem morou na casa
quem morreu

Eu sei quem não pôde viver na casa

É uma casa
com seus andares
suas escadas
seus corredores
varandas
aposentos
alvenaria
muros

imponderável.

Uma casa qualquer.
Cruz que se carrega.
Imponderávelmente, para sempre, às costas.
“...fazia muito tempo que eu não tinha vontade
de sorrir para nada nem para ninguém,
então era extraordinário que ele conseguisse
perturbar assim os cantos de meus lábios...”

Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Epigrama Nº 9
Cecília Miereles

O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.

Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? Sobre esse vento?
Sobre essa folha que se vai?

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Versos
Florbela Espanca

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz. Cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.

Versos!... Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...

Versos! Versos! Sei lá o que são versos..
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!...
Campo
Cecília Meireles

Campo da minha saudade:
vai crescendo, vai subindo,
de tanto jazer sem nada.

Desvelo mudo e contínuo
que vai revestindo os montes
e estendendo outros caminhos.

Mergulhada em suas frondes,
a tristeza é uma esperança
bebendo a vazia sombra.

Águas que vão caminhando
dispersam nos mares fundos
mel de beijo e sal de pranto.

Levam tudo, levam tudo
agasalhado em seus braços.

Campo imenso com meu vulto...
E ao longe cantam os pássaros.
2º Motivo da Rosa
Cecília Meireles

Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar te assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,
sem eco de cisternas ou de grutas...
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas,

e a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas...