terça-feira, 29 de junho de 2010


Sol Posto
Florbela Espanca

Sol posto. O sino ao longe dá Trindades
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes... E saudades
Nos atalhos parecem dormitando...

É esta a hora em que a suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d'amargura...

É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p'lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando...

Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!...
Soneto de Contrição
Vinícius de Moraes

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.
A Uma Mulher
Vinicius de Moraes

Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

...Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas
Uma lembrança boa de você
Uma vontade de cuidar melhor de mim
De ser melhor para mim e para os outros
De não morrer, de não sufocar
De continuar sentindo encantamento
por alguma outra pessoa
Que o futuro trará, porque sempre traz
E então não repetir nenhum comportamento
Ser novo...

Caio Fernando Abreu
És o meu sonho lindo... madrugada
De luzes...sobre a relva macia
Onde ficou adormecido o teu sorriso.

És a minha esperança inacabada
O esplendor do silencio , a alquimia
Toda a visão fugaz do paraíso.

Luna
Mas vocês não repararam, não?!
Nos salões do sonho nunca há espelhos...
Por quê?
Será porque somos tão nós mesmos
Que dispensamos o vão testemunho dos reflexos?
Ou, então
- e aqui começa um arrepio -
Seremos acaso tão outros?
Tão outros mesmos que não suportaríamos a visão daquilo,
Daquela coisa que nos estivesse olhando fixamente do outro lado,
Se espelhos houvesse!
Ninguém pode saber... Só o diria
Mas nada diz,
Por motivos que só ele conhece,
O misterioso Cenarista dos Sonhos!


Mario Quintana

terça-feira, 1 de junho de 2010

Ofélia
Henriqueta Lisboa

Um rio longo, verde escuro
sustém o corpo de Ofélia.
Longos cabelos emolduram
a forma branca, esquiva e débil
suspensa ao balanço da água.
Por entre espumas e sargaços
desabrocha o rosto de nácar.
Agora o busto de onda se ergue,
resvala o fino tronco, os membros
esvaem-se trêmulos, trêmulos.

Debruço-me sobre o rio
para salvá-la. E então me perco.
Meus olhos já não podem vê-la
nublados de bolhas e liquens.
Meus braços não mais a alcançam
hirtos do pavor da morte.

Ofélia, serena, dorme.
E sonha. Nas praias últimas
um anjo lhe enxuga as tranças.
Um anjo a recolhe e adverte
da inanidade de tudo.

E enquanto se eterniza Ofélia,
para Ofélia desapareço.