quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Concha e a Virgem
Gonçalves Dias

Linda concha que passava,
Boiando por sobre o mar,
Junto a uma rocha, onde estava
Triste donzela a pensar,

Perguntou-lhe: - "Virgem bela,
Que fazes no teu cismar?"
- "E tu", pergunta a donzela,
"Que fazes no teu vagar?"

Responde a concha: - "Formada
Por estas águas do mar,
Sou pelas águas levada,
Nem sei onde vou parar!"

Responde a virgem sentida,
Que estava triste a pensar:
- "Eu também vago na vida,
Como tu vagas no mar!

"Vais duma a outra das vagas,
Eu dum a outro cismar;
Tu indolente divagas,
Eu sofro triste a cantar.

"Vais onde te leva a sorte,
Eu, onde me leva Deus:
Buscas a vida, — eu a morte;
Buscas a terra, — eu os céus!
Gota de Água
Antônio Gideão

Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.
Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como um acidente em seu sujeito,
Assim coa alma minha se conforma,

Está no pensamento como idéia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

Luís Vaz de Camões

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tua Carta
J. G. de Araujo Jorge

A carta que escreveste é a oração que repito
todas as noites, sempre, antes de me deitar,
à hora em que abro a janela ao azul do infinito
e me ausento de tudo... e me esqueço a sonhar...

Eu, descrente da terra e dos homens, descrente
mais ainda dos céus, com bem maior razão,
murmuro a tua carta religiosamente
pois fiz do teu amor a minha religião...

Tua carta, nem sei... releio-a a todo instante,
ela acende em meus olhos tristes alegrias
e me faz esquecer que te encontras distante...

Paradoxos talvez, mentiras!... Não te esqueço
se toda noite assim (há não sei quantos dias),
com teu nome em meus lábios... rezando adormeço!...
A todos trato muito bem
sou cordial, educada, quase sensata,
mas nada me dá mais prazer
do que ser persona non grata
expulsa do paraíso
uma mulher sem juízo, que não se comove
com nada
cruel e refinada
que não merece ir pro céu, uma vilã de novela
mas bela, e até mesmo culta
estranha, com tantos amigos
e amada, bem vestida e respeitada
aqui entre nós
melhor que ser boazinha é não poder ser imitada.

Martha Medeiros
Eis que encontro na rua uma das moças mais lindas do mundo.
Vestida simplesmente, parecia no entanto uma princesa
Um meigo olhar, um sorriso que parecia uma aurora dentro de nós.
Não pude, não pude mais e lhe indaguei de súbito:
"Como é teu nome, minha querida?"
E ela respondeu-me simplesmente: AUSÊNCIA.

Mario Quintana

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Quanto mais escrava
mais escrevo
pra libertar essa mulher da vida
que me habita

Martha Medeiros
Ontem à Noite
Victor Hugo
(Tradução de Casimiro de Abreu)

Ontem — sozinhos — eu e tu, sentados,
Nos contemplamos quando a noite veio:
Queixosa e mansa a viração dos prados
Beijava o rosto e te afagava o seio,
Que palpitava como ao longe o mar...
E lá no céu esses rubis pregados
Brilhavam menos que teu vivo olhar!

Co´a mão nas minhas, no silêncio augusto,
Tu me falavas sem mentido susto,
E nunca a virgem que a paixão revela,
Passou-me em sonhos tão formosa assim!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Recado
Roseana Murray

Ao vento da noite sussurro
sete segredos; tudo que
tenho por fora tudo que tenho
por dentro, que o vento vá levando
minha sede de amor, pule cerca
pule sebes abra porteiras no mar
derramando meu recado nos quatro
cantos do ar...

Noturno
Henriqueta Lisboa

Meu pensamento em febre
é uma lâmpada acesa
a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,
à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas
em redor do fogo.

A Menina Selvagem
Henriqueta Lisboa

A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.

Reis Magos, é tempo!
Ofereci bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.
Aquarela Estival
Torquato da Luz

Tem o cheiro do Verão quando amanhece
e dos seus olhos, onde é sempre dia,
desprende-se uma luz que me deslumbra.
Ao caminhar, em seu redor parece
que o ar se faz de sol e maresia
sem a mais leve réstia de penumbra.
E como em desafio serpenteia
onde o mar vem deitar-se com a areia.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Pequena Elegia de Setembro
Eugénio de Andrade

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
Cantiga de Roda
Helena Kolody

Ao som de ingênua cantiga,
Gira, ligeira, uma roda.

Bailam cabelos de linho,
Brilha a cantiga nos olhos,
Saltam, leves, os pezinhos.

Os grandes cedros antigos,
Também, se põem a bailar:
Cantam os ramos no ar,
Dançam as sombras no chão.
Espanto
Torquato da Luz

O segredo está no espanto,
esse dom que exorciza o desencanto
e nos mantém capazes de admirar.

Só envelhece quem, à sua volta,
deixou de ter bem solta
a surpresa de olhar.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Lágrimas
Cesário Verde

Ela chorava muito e muito, aos cantos,
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos,
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,
Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos;
- “Tu pareces nascida de rajada,
Tens despeitos raivosos, resolutos;

Chora, chora, mulher arrenegada;
Lacrimosa por esses aquedutos…
Quero um banho tomar de água salgada.”


Passa uma Borboleta
Alberto Caeiro

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
O Outro Carnaval
Carlos Drummond de Andrade

Fantasia,
que é fantasia, por favor?
Roupa-estardalhaço, maquilagem-loucura?
Ou antes, e principalmente,
brinquedo sigiloso, tão íntimo,
tão do meu sangue e nervos e eu oculto em mim,
que ninguém percebe, e todos os dias
exibo na passarela sem espectadores?
Carência
Helena Kolody

Algo que falta
Puxa as raízes,
Sobe caules,
Rebenta em flores,
No intenso impulso
De ir mais além.

Vida é carência.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Antemanhã
Mario Quintana

Trotam, trotam, desbarrancando o meu sono,
os burrinhos inumeráveis da madrugada.
Carregam laranjas? Carregam repolhos? Carregam abóboras?
Não. Carregam cores. Verdes tenros. Amarelos vivos.
Vermelhos, Roxos, Ocres.
São os burrinhos-pintores.
Levam o Amanhecer
Helena Kolody

Partem.
E levam consigo
A memória
De nosso amanhecer.

A quem dirigir

A pergunta mágica:
Lembra-se?

Quem
Entre os jovens,
Acreditará
Que somos jovens também?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quando bebo além da conta
minha língua fica esperta e meus olhos
brilham mais
quem me dera todo dia essa alegria de taberna

Martha Medeiros



Quando Ela Passa
Fernando Pessoa

Quando eu me sento à janela
P’los vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Quando passa...passa...passa...

Lançou-me a mágoa sem véu: –
Menos um ser neste mundo
E mais um anjo no céu.

Quando eu me sento à janela,
P’los vidros que a neve embaça
Julgo ver a imagem dela
Que já não passa...não passa...
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.


Fernando Pessoa
Eu Não Existo Sem Você
Vinicius de Moraes

Eu sei e você sabe
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham a você.

Assim como o Oceano, só é belo com o luar
Assim como a Canção, só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem, só acontece se chover
Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor, não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Me visto de vermelho
a raiva tem essa cor

uma lança na mão
uma mancha no lençol

São Jorge
um dragão
um sonho solto

estou pronta para enfrentar
meu inferno zodiacal

Martha Medeiros











Confissão
Florbela Espanca

Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa
De frio e de gelado, de pérfido e cruel,
Como um orvalho frio no tampo duma lousa,
Como em doirada taça algum amargo fel.

Odeio-te também. O teu olhar ideal
O teu perfil suave, a tua boca linda,
São belas expressões de todo o humano mal
Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.

Desprezo-te também. Quando te ris e falas,
Eu fico-me a pensar no mal que tu calas
Dizendo que me queres em íntimo fervor!

Odeio-te e desprezo-te. Aqui toda a minh'alma
Confessa-to a rir, muito serena e calma!
Ah, como eu te adoro, como eu te quero, amor!...
A Esta Hora
Florbela Espanca

A esta hora branda d'amargura,
A esta hora triste em que o luar
Anda chorando, Ó minha desventura
Onde estás tu? Onde anda o teu olhar?

A noite é calma e triste... a murmurar
Anda o vento, de leve, na doçura
Ideal do aveludado ar
Onde estrelas palpitam... Noite escura

Dize-me onde ele está o meu amor,
Onde o vosso luar o vai beijar,
Onde as vossas estrelas co fulgor

Do seu brilho de fogo o vão cobrir!
Dize-me onde ele está!... Talvez a olhar
A mesma noite linda a refulgir...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Foi então que ela viu no calendário
um sofrimento diário
uma dor que tinha número
e uma aflição já havia um mês

foi então que resolveu queimá-lo
e trocá-lo por uma ampulheta
que baixa a dor mais rápido
e mata O amor de vez

Martha Medeiros

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Neste Mar Prodigioso
Emily Dickinson
Tradução: Idelma Ribeiro de Faria

Neste mar prodigioso,
Velejando silencioso,
Ho! Timoneiro, ho!
Conhecereis a praia
Onde a vaga se espraia
E a tempestade cessou?

Ao ocidente – remanso
De velas em descanso,
Âncoras na imobilidade -
Vou para lá vos guiar.
Terra à vista! Eternidade!
Enfim, desembarcar!

Assim Eu Vejo a Vida
Cora Coralina

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
Ausente, pensativo, solitário,
como se vos tivera ali presente
dou e tomo as razões ousadamente
firme em amor, em pensamento vário.

Quando venho ante vós com temerário
fervor renovo n’alma juntamente
quantos cuidados tive estando ausente,
que tudo em tal aperto é necessário.

Uns aos outros se impedem na saída
e querem cometer e não se abalam,
e vou para falar e fico mudo.

Porém meus olhos, minha cor perdida,
meu pasmo, meu silêncio, por mim falam,
e não dizendo nada, digo tudo.

Estevão Rodrigues de Castro

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Envelhecer, quem sabe
não seja assim tão desastroso
me interessa perder esta ansiedade
me atrai ser atraente mais tarde
um pouco mais de idade, que importa
envelhecer, quem sabe
não seja assim tão só

Martha Medeiros